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CONTRA OS "USOS MAIS NOBRES" PARA O PATRIMÔNIO

  • Foto do escritor: vivianbarbour
    vivianbarbour
  • 2 de out. de 2021
  • 4 min de leitura

Com narrativas apaziguadoras, os 90 anos em que a Vila Itororó foi usada como moradia são tratados como apenas um parêntese

Em 10 de setembro a Prefeitura do Município de São Paulo anunciou a reabertura da Vila Itororó como um equipamento municipal de cultura. Dessas coincidências que a vida carrega, está o fato de que há exatos 40 anos, o IAB-SP (Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo) pedia o tombamento da Vila no Condephaat ( Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico)– órgão estadual de preservação. O pedido destacava a excepcionalidade estética do conjunto e indicava que o seu tombamento era um caminho para que no futuro se lhe pudessem atribuir “destinação mais nobre”.

O pedido do IAB-SP se respaldava em estudo elaborado anos antes pelos arquitetos Décio Tozzi e Benedito Lima de Toledo a pedido da então Coordenadoria Geral de Planejamento. Ainda que mobilizasse premissas da Carta de Veneza – marco importante e ainda atual nos debates sobre restauro –, do estudo emergia um olhar bastante conservador sobre o patrimônio: uma busca exacerbada e não documentada por um suposto estado original, num verdadeiro achatamento da história. O valor da Vila emanava essencialmente da sua materialidade, a qual teria sido deteriorada pelo uso habitacional. A solução: transformar tudo numa grande casca, com miolos vazios para abrigar um centro cultural.

Assim, o desejo de enobrecer o uso da Vila se opunha à sua ocupação até então predominante: a moradia. A foto que acompanhou o pedido de tombamento era bastante emblemática: crianças pretas de shorts e sem camisa jogavam bola em frente ao palacete do conjunto, no qual era possível enxergar intervenções como cortinas e pedaços de madeira. A rusticidade desses elementos contrastava com a construção, que um dia foi a residência de Francisco de Castro, o não-português que concebeu a Vila.

Importante dizer não-português porque a história da Vila é carregada de mitos, a começar por Castro que, de “português inventivo e imaginoso”, descobriu-se ser na verdade natural de Guaratinguetá e que, na Vila, fez o que era o costume num cenário de escassez de materiais na São Paulo do início do século: construir com restos de demolição. De todo modo, esses mitos têm servido historicamente para situar a Vila num passado distante e glorioso, para o qual sua preservação deveria apontar.

Nessa ótica de valorização do patrimônio, o morar não correspondia à excepcionalidade da Vila Itororó. E não poderia ser diferente, afinal, morar é aquela relação demorada, alongada, que se constrói cotidianamente, nas miudezas da vida, com suas práticas culturais e relações sociais. Mas então fica a pergunta: por que os bens de interesse para preservação, carregados na tinta de sua excepcionalidade, não podem abrigar usos cotidianos como o morar? Em especial quando foi para o uso habitacional que foram concebidos, como é o caso da Vila?

Nas últimas décadas, o campo do patrimônio passou por muitas transformações. Não só os estudos sobre a Vila se aprofundaram, como também a própria noção de patrimônio se alargou. Aos poucos, foi-se abandonando a ideia de que o valor dos bens culturais se resume à matéria. Para além da preservação material, deve-se olhar para a preservação social, num exercício de pensar de que forma o patrimônio se relaciona com as pessoas e com a cidade. Ainda assim, entre 2011 e 2013, os moradores da Vila foram dali retirados, sem maiores explicações do porquê a preservação do conjunto apenas poderia se dar na sua ausência.

ALÉM DA PRESERVAÇÃO MATERIAL, DEVE-SE OLHAR PARA A PRESERVAÇÃO SOCIAL, NUM EXERCÍCIO DE PENSAR DE QUE FORMA O PATRIMÔNIO SE RELACIONA COM AS PESSOAS E COM A CIDADE

Com a mudança das gestões municipais e a atualização do projeto de restauro, foi possível ver a mudança de paradigma do campo do patrimônio no trato com a Vila. Entre 2015 e 2019, o Instituto Pedra, responsável pelo restauro do conjunto, encabeçou o projeto Vila Itororó Canteiro Aberto, em que as obras eram realizadas ao mesmo tempo em que a sociedade civil usufruía do lugar. Com todas as contradições e tensões intrínsecas ao projeto, a destinação da Vila era debatida cotidianamente, não como algo a ser implementado, mas como algo que já se realizava e se construía no presente.

Mantendo a tipologia habitacional das construções– na contramão da ideia de casca vazia proposta por Tozzi e Toledo, para abrigar um qualquer-uso-cultural – o Pedra garantia a possibilidade de a Vila novamente ser um lugar de moradia, se para isso houvesse vontade política. Permanecia, assim, na matéria, testemunhos do morar.

O caso da Vila é paradigmático do típico movimento pendular do campo da preservação. Hoje se dissolveu o consenso de que o uso cultural é o “uso mais nobre” para um bem tombado. No entanto, ainda é muito difícil ver os avanços do campo teórico serem colocados em prática. Ainda persiste uma atuação que pressupõe o valor do patrimônio como imanente.

Infelizmente, a recente “reabertura” da Vila Itororó está bastante alinhada com esse pensamento. Com narrativas apaziguadoras, os 90 anos em que a Vila foi usada como moradia são tratados como apenas um parêntese. Nessa linha do tempo esquizofrênica, não há espaço para os moradores da Vila, para as tensões e os silenciamentos ali sofridos e para as disputas em torno de quais valores deveriam ali ser preservados. E o principal, não há espaço para se questionar a destinação por um “uso mais nobre”, que enfim se concretizou.

Com seu espetáculo de luzes, a inauguração da Vila é um claro exemplo da cultura-cólica, tal como nos ensina o historiador Ulpiano Bezerra de Meneses. É a cultura asséptica, apartada do cotidiano e do universo do trabalho, distante das relações sociais, distante das disputas. É a cultura que surge em espasmos, como que para nos anestesiar e nos deixar num estado meramente contemplativo. Só que a última coisa que queremos nesses tempos sombrios é nos deixarmos anestesiar.


PUBLICADO NO NEXO JORNAL



 
 
 

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